terça-feira, 27 de novembro de 2012

Automóvel


A nossa vida cabe dentro de um carro.

Você se vai e o que resta?

          Se você morre, tirando o corpo, o que sobrou?
         
          Um monte de tranqueiras...
          Roupas, uns cremes, uma escova de dentes, uns perfumes, livros...

          E depois que o útil for doado, o inútil cabe dentro de algumas caixas, e lá se vai um carro, e a sua vida dentro.

          Se você for rico o carro será maior, os detalhes mais bem cuidados e vai ter mais gente fingindo que se importa...

          Mas, via de regra, tudo o que você é, tudo o que te representa cabe em um automóvel.

          Sempre terá, é claro, o amor de quem realmente se importava.
         
          Mas a morte é uma dor, e quando a ferida cicatrizar o amor seca. Logo se transforma em uma saudade, que desfoca e vira uma distante lembrança, um borrão...

          Você não passa de um borrão,
          um borrão com um sorriso pequeno, quase imperceptível.

          Niyemayer estava certo. A vida é um sopro.




          Mas ele projetou Brasília. E você deixou o que?

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Crônicas Coloridas V


V_ Peter

          Desliga o carro, tira a chave da ignição, retira o rádio do painel e guarda-o no estojo enquanto respira fundo, o tempo está passando e essas noitadas vão ficando cada vez mais curtas, mais cansativas, mais difíceis. Sabe, mas não admite.

          Qualquer um que o visse classificaria-o rapidamente como lindo, bonito, "boa-pinta" ou qualquer coisa que o valha, alto e com músculos definidos, frutos de muito esforço e dedicação, maxilar com linhas claras e retas, quase quadrado, cabelo na moda e olhos verdes que fariam qualquer 'bibinha' declarar-se apaixonada instantâneamente, amor miojo.

          E não importava o que os outros diziam, estava convencido de ter nascido na década errada. Nunca se deu bem com os gays da sua idade, exceto um amigo aqui e acolá, passou desapercebido pelos vinte anos, não frequentava qualquer lugar 'gls' nos anos 90 e nutria um ódio profundo pela música techno 'putz-putz' que reinava na época.

          Nessa noite vai a uma balada com alguns amigos, nenhum deles nascido antes de 92, não é nenhum iludido, tem seu MBA e sabe muito bem aonde está pisando e é plenamente consciente das diferenças que os unem. Mesmo assim, não se conforma com calmarias ou supostos relacionamentos sérios, pra ele gays são sempre jovens, sexo é sempre a primeira coisa da lista, e o saldo de beijos no fim da noite ainda é mais importante do que a qualidade de qualquer um deles.

          Identifica um dos amigos na fila e volta a si, sai do carro e o acompanha, logo estará dançando e disparando olhares fulminantes, que são sempre bem recebidos. Curiosamente a casa noturna se chama Terra do Nunca e o apelido de seu amigo é 'sininho'. Enquanto passava pela revista do segurança sentia um metal gelado e frio, curvo e afiado tocar sua pele. Se assusta, procura pela origem daquela sensação, em vão. A vida as vezes se disfarça de conto de fadas.

sábado, 3 de novembro de 2012

Sobre o tempo


Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta tempora assedia;

Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sobra franca
E em feixe atado agora o vejo trigo seguir o carro,
A barba hirsuta e branca;

Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo à dura prova?,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascer a graça nova.

Contra a foice do tempo é vão combate
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate

SHAKESPEARE, William.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Crônicas Coloridas III

III_ Picuinha

xato_insuportahhvel diz: "—Fulano falou que ciclano disse que beltrana viu você beijando e levando o ZéNinguém pra casa! que babado é esse?"

  Ele respira fundo e recomeça, explica pela enésima vez que Fulano, Ciclano e Beltrana estavam enganados, que não era ele, e que ele nunca beijaria o ZéNinguém, quanto menos levá-lo pra casa. Diz novamente que prefere muito mais o JoãoSemnome, o namorado dele, "— Ele tem uns braços mais malhados e umas tatuagens mais legais". E ao apertar o 'enter' automaticamente já cria mais episódios para a novelinha cotidiana.

  Na mais nova versão distorcida levou João, escondido e sem pagar a conta do bar, pra casa, enquanto Zé chorava as pitangas no colo das amigas "hétero-moderninhas" (que na verdade só estão ali por não se conformarem com a viadagem desse mundo), daquelas que secretamente juram: "— Vou fazer esse virar macho!".

          Logo, mais quinze pessoas ficarão sabendo do novo episódio, em um efeito dominó tão rápido quanto um clique em 'compartilhar', e farão imediatamente seu juízo de valor, afinal "todo mundo sabe" que ele é um galinha mesmo.

          O coitado do ZéNinguém já pegou a fama de corno, afinal quem mandou não estar online pra se defender? São duas e meia da manhã, sim, mas "TINHA" que estar online pra se defender. Quanto ao JoãoSemnome, ninguém se lembra muito dele, é daqueles bons de se olhar, e só.

          Os dias passam e continuam a chover as indiretas e os "mimimi's" ele quebra a cabeça tentando não parecer o vilão da história, só ainda não percebeu que: Não há nada mais uniforme na juventude colorida do que a superfície ampla e gosmenta do recalque.