terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Crônicas Coloridas VI


VI- Sombra

          Um corredor longo, imundo, mal iluminado. Fedia a uma mistura de mofo e mágoa derretida. Pelas paredes retratos tortos e manchados pendurados, recentes, mas comprometidos pelas bactérias e fungos das invejas e do ciúmes.

          O amarelo sujo enferrujado do recalque pinta as paredes, e ele o perceberia se não estivesse sempre envolto na esfera escura de auto piedade e solidão que lhe devora.

          Procura desesperadamente algo que faça a dor parar, vasculha seus discos rígidos, seus episódios, seus livros, em vão. Não há força neste mundo poderosa o suficiente para entrar em sua esfera. Tirá-lo de lá seria ainda mais difícil.

          De longe uma sábia senhora o observa, se perguntando quanto tempo será necessário para que ele perceba que daquela esfera basta um passo, daquele quarto basta atravessar a porta, daquele corredor basta que o atravesse. A felicidade é uma porta, a maçaneta é a vontade.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Automóvel


A nossa vida cabe dentro de um carro.

Você se vai e o que resta?

          Se você morre, tirando o corpo, o que sobrou?
         
          Um monte de tranqueiras...
          Roupas, uns cremes, uma escova de dentes, uns perfumes, livros...

          E depois que o útil for doado, o inútil cabe dentro de algumas caixas, e lá se vai um carro, e a sua vida dentro.

          Se você for rico o carro será maior, os detalhes mais bem cuidados e vai ter mais gente fingindo que se importa...

          Mas, via de regra, tudo o que você é, tudo o que te representa cabe em um automóvel.

          Sempre terá, é claro, o amor de quem realmente se importava.
         
          Mas a morte é uma dor, e quando a ferida cicatrizar o amor seca. Logo se transforma em uma saudade, que desfoca e vira uma distante lembrança, um borrão...

          Você não passa de um borrão,
          um borrão com um sorriso pequeno, quase imperceptível.

          Niyemayer estava certo. A vida é um sopro.




          Mas ele projetou Brasília. E você deixou o que?

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Crônicas Coloridas V


V_ Peter

          Desliga o carro, tira a chave da ignição, retira o rádio do painel e guarda-o no estojo enquanto respira fundo, o tempo está passando e essas noitadas vão ficando cada vez mais curtas, mais cansativas, mais difíceis. Sabe, mas não admite.

          Qualquer um que o visse classificaria-o rapidamente como lindo, bonito, "boa-pinta" ou qualquer coisa que o valha, alto e com músculos definidos, frutos de muito esforço e dedicação, maxilar com linhas claras e retas, quase quadrado, cabelo na moda e olhos verdes que fariam qualquer 'bibinha' declarar-se apaixonada instantâneamente, amor miojo.

          E não importava o que os outros diziam, estava convencido de ter nascido na década errada. Nunca se deu bem com os gays da sua idade, exceto um amigo aqui e acolá, passou desapercebido pelos vinte anos, não frequentava qualquer lugar 'gls' nos anos 90 e nutria um ódio profundo pela música techno 'putz-putz' que reinava na época.

          Nessa noite vai a uma balada com alguns amigos, nenhum deles nascido antes de 92, não é nenhum iludido, tem seu MBA e sabe muito bem aonde está pisando e é plenamente consciente das diferenças que os unem. Mesmo assim, não se conforma com calmarias ou supostos relacionamentos sérios, pra ele gays são sempre jovens, sexo é sempre a primeira coisa da lista, e o saldo de beijos no fim da noite ainda é mais importante do que a qualidade de qualquer um deles.

          Identifica um dos amigos na fila e volta a si, sai do carro e o acompanha, logo estará dançando e disparando olhares fulminantes, que são sempre bem recebidos. Curiosamente a casa noturna se chama Terra do Nunca e o apelido de seu amigo é 'sininho'. Enquanto passava pela revista do segurança sentia um metal gelado e frio, curvo e afiado tocar sua pele. Se assusta, procura pela origem daquela sensação, em vão. A vida as vezes se disfarça de conto de fadas.

sábado, 3 de novembro de 2012

Sobre o tempo


Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta tempora assedia;

Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sobra franca
E em feixe atado agora o vejo trigo seguir o carro,
A barba hirsuta e branca;

Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo à dura prova?,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascer a graça nova.

Contra a foice do tempo é vão combate
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate

SHAKESPEARE, William.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Crônicas Coloridas III

III_ Picuinha

xato_insuportahhvel diz: "—Fulano falou que ciclano disse que beltrana viu você beijando e levando o ZéNinguém pra casa! que babado é esse?"

  Ele respira fundo e recomeça, explica pela enésima vez que Fulano, Ciclano e Beltrana estavam enganados, que não era ele, e que ele nunca beijaria o ZéNinguém, quanto menos levá-lo pra casa. Diz novamente que prefere muito mais o JoãoSemnome, o namorado dele, "— Ele tem uns braços mais malhados e umas tatuagens mais legais". E ao apertar o 'enter' automaticamente já cria mais episódios para a novelinha cotidiana.

  Na mais nova versão distorcida levou João, escondido e sem pagar a conta do bar, pra casa, enquanto Zé chorava as pitangas no colo das amigas "hétero-moderninhas" (que na verdade só estão ali por não se conformarem com a viadagem desse mundo), daquelas que secretamente juram: "— Vou fazer esse virar macho!".

          Logo, mais quinze pessoas ficarão sabendo do novo episódio, em um efeito dominó tão rápido quanto um clique em 'compartilhar', e farão imediatamente seu juízo de valor, afinal "todo mundo sabe" que ele é um galinha mesmo.

          O coitado do ZéNinguém já pegou a fama de corno, afinal quem mandou não estar online pra se defender? São duas e meia da manhã, sim, mas "TINHA" que estar online pra se defender. Quanto ao JoãoSemnome, ninguém se lembra muito dele, é daqueles bons de se olhar, e só.

          Os dias passam e continuam a chover as indiretas e os "mimimi's" ele quebra a cabeça tentando não parecer o vilão da história, só ainda não percebeu que: Não há nada mais uniforme na juventude colorida do que a superfície ampla e gosmenta do recalque.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Crônicas Coloridas II

II - Ilusão

          Impaciente e sozinho na fila da balada, barba feita, jeans apertado, uma correntinha pra dar uma diferenciada, o cabelo pra cima e o ego inflado.

          "— Sério, o que eu tô fazendo aqui sozinho?" Se pergunta em tom irônico mas já sabe da resposta, corajoso até certo ponto, medroso demais para encarar o monstro do 'sábado-a-noite-sozinho'. Antes uma fila cheia de viados chatos e espalhafatosos, das figurinhas repetidas que batem cartão na noite, do que o sem-som infinito do seu apartamento e o tratamento de gelo do seu travesseiro.

          Ao menos quando entrar na pista de dança … ah! a pista de dança! … lá o mundo se apaga , lá a homofobia vira neon, o salário ruim vira gelo seco, e as invejas viram álcool.

          Dança a noite toda, muito porque quer, mas muito mais porque precisa, precisa se sentir vivo, precisa que olhem pra ele com volúpia, precisa do desejo.

          E sabe muito bem que aquela pista é sua torre e sua prisão, que o DJ é a bruxa má que lhe enfeitiça e o segurança é o dragão, e espera, espera enquanto o príncipe encantado não chega, embora pense que se fosse ele o príncipe, não valeria a pena o risco.

          Mais um gole de absinto, mais um passo em direção ao mundo mágico dos bêbados, mais parecidos com o príncipe vão ficando os ogros, será que dá pra diferenciar?

          E quando o sol invade e derrete seu mundinho, olha pros lados e percebe-se sozinho, de novo atrasou-se o sr. príncipe, de novo machucou-se a sra. princesa.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Crônicas Coloridas

I — Dinheiro

          A toalha felpuda passa lentamente pelos braços, pelas pernas, mais uma vez pelos cabelos, levando as gotas que resistiram, acariciando os póros abertos, suprindo a necessidade das carícias de um corpo acostumado às pancadas, ao insensível. O plug se conecta na tomada e o velho secador de cabelos começa a urrar transpassando o ar úmido e sufocante de sua casa apertada, a escova passa modelando e fixando os cabelos para cima, a chapinha e a pomada auxiliam.

          Veste sua cueca Calvin Klein, falsa, mas o que importa é o 'truque', sua calça jeans apertada, toma quase outro banho de perfume, enfia às pressas a camiseta ainda mais justa, estilo gola v, eles já estão lhe esperando, impacientes.

          Há alguns minutos soava a buzina do belo Crossfox preto à porta de sua casa, as vizinhas que trocavam recalques e venenos em voz baixa, sorrateiras como cobras, acompanham o desenrolar, desconhecem o carro, desconhecem a perspectiva.

          Tranca a porta do quarto e desce as escadas, guarda a vergonha no bolso traseiro junto com as chaves, o orgulho ferido e a auto estima baixa não dá pra guardar, mas também não dão na vista, e no fim das contas quem se importa com o que não dá na vista?

          Abre a porta da rua, olha as vizinhas nos olhos e sente na boca o gosto amargo do julgamento, ou seria o sangue? — Aquele dente do ciso maldito!

  Tranca a porta da rua, gira 180 graus abre a porta do carro e entra. Que fiquem as vizinhas perplexas, a rotina urge!... assim como os cobradores.

sábado, 9 de junho de 2012

Auto Indignação

‎"Vamos deixar as migalhas aos pombos, minha gente? Deixem de chorar por pouca coisa, sofrer por coisa besta, dizer que ama a primeira pessoa que te faz carinho e mexe no seu cabelo. Você, eu... Todo mundo merece mais. Aproveite a companhia de você mesmo, conheça-se, descubra-se e valorize-se... Agradando e buscando ao outro é o principal jeito de se perder. Não existe felicidade pequena, ela tem de ser plena, como oceano e você, meu caro, tem que se encharcar nela. Desvie os olhos do pequeno, do fácil, do alheio. Cuide de você e da curva do seu sorriso. As coisas pequenas? Ou seres pequenos? Aqueles que te fizeram pequeno? Ora, pra tudo isso tem muita pomba em muita praça por aí." - Pate Ferreira


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Lucy Costa e Silva - Um conto ditatorial


"Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue"
 - Chico Buarque e Gilberto Gil

A pequena Lucy era diferente das outras menininhas do colégio.
Seus cabelos intensamente pretos, tão escuros quanto a alma dos escusos.
Seus olhos grandes e olheiras profundas, provavam seu sono atormentado. Frio.

O arroz e feijão lhe enfurecia, odiava suas rotinas com vigor estudantil. As caveiras no entanto, lhe pareciam bem mais simpáticas.

Para Lucy o mundo sempre foi mais cinza, mas seus olhos estavam bem.
As cores só não alcançavam sua alma.

Não se preocupe no entanto.
Lucy era bem feliz no seu jeito, pois enquanto todos viam uma menina cinza, a menina cinza via o encanto!

Para ouvir:


sábado, 12 de maio de 2012

Ganância


Queria tanta coisa.
Queria ter tempo e inspiração pra escrever mais.
Queria ter o sossego do sábado numa semana toda de vez em quando.
Queria meus amigos todos perto de mim.

Aliás, queria meus amigos perto uns dos outros...

Talvez eu queira demais.

Talvez eu devesse parar de tomar vinho e reclamar como
uma personagem de sitcom.

De gole em gole e de passo em passo eu vou me aproximando de uma meta e me distanciando da outra.
Já disseram por ai que não se pode ter tudo.

Mas esqueceram de me avisar que eu não posso querer tudo mesmo assim.

Pra ouvir: